CNC: Consentimento Previamente Dado com Senhor H e tavi_H – BDSM

Equina Nur
BDSM de iniciante
Published in
11 min readAug 21, 2021

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Senhor H e tavi_H

Consensual Non Consent joga com os limites do consentimento e pode ser considerada uma forma de edge play. O bottom, após uma negociação cuidadosa, dá consentimento prévio ao Top para submetê-lo a práticas as quais ele pode não estar desejando no momento. É consentir em não consentir. Os bottoms que topam esse acordo o fazem não por entrega, mas por tesão nesse tipo de jogo, por tesão na ideia de violação e por um delicioso prazer em “não gostar”.

"Se vc quer só molhar o pé, passe longe. CNC mexe com emoções muito profundas" — tavi_H

CNC é um tipo de acordo cheio de particularidades e, pelos riscos, não é um jogo indicado para iniciantes e nem para aqueles que não estão muito abertos a aprenderem sobre si mesmos e sobre o outro. Para entender melhor como funciona, conversei com Senhor H e tavi_H, dois praticantes de BDSM com mais de uma década de estrada, que morrem de tesão nisso e que negociaram por um ano antes de ingressar numa relação em que vários aspectos são CNC.

Égua reporter: O que é CNC (Consensual Non Consent) e como isso poderia ser traduzido para o nosso idioma?

Senhor H: Pois então, eu acho que a MELHOR forma de tradução não seria a sigla, seria “consentimento previamente dado”. Consentimento previamente dado (a alguma prática, e/ou por um tempo determinado e/ou a práticas em uma relação). O entre parênteses é o não dito, mas importantíssimo. Mas a sigla significa consensual non consent ou, em português literal, consentimento em não ter consentimento.

tavi_H: Eu entendo que funciona bem o “não consentimento consensual”. CNC é um acordo de algumas relações no BDSM, no qual o bottom, após muitas conversas e negociação, consente em passar por situações em que, na hora, ele não deseja o que está acontecendo. E por que alguém faria isso? Por desejo. Por que tem o fetiche de chegar o mais perto possível da sensação de violação. Não é um favor ao Top. É um desejo tb do bottom.

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Égua reporter: Bem, então o consentimento previamente dado (ou não consentimento consensual) é algo que parte do desejo de ambos. Na prática como isso rola numa relação?

tavi_H: Sim. É importante dizer que há consentimento. Nada no BDSM pode ocorrer sem consentimento. No caso do CNC, se fala em consentimento prévio.

Senhor H: Isso rola na prática formando acordos sobre o que se pode fazer, e o tempo que se pode fazer. Ou seja, a gente fala o que tem desejo e conversa sobre, sobre as consequências e como é quando se pode fazer. Depois disso, eu tenho a liberdade de, dentro do ajustado, fazer aquela coisa sempre que eu quiser.

tavi_H: Do lado de dentro, o que eu posso dizer é que o CNC é um jogo perigoso. É brincar no limite. E tem seus riscos. Mas, eu sempre digo que eu gosto quando eu não gosto. O CNC te permite vivenciar o prazer no sofrimento de forma muito intensa. Eu não seria tão realizada no BDSM sem isso, porque faz parte do meu prazer. E óbvio, na relação, eu só me permito passar por coisas assim porque confio muito e conheço muito bem a mim mesma e ao meu Dono.

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Égua reporter: Podem dar um exemplo da relação de vocês (ou algum que queiram criar) para quem nunca ouviu falar poder entender?

tavi_H: Um exemplo: rape play. Já passei por ter recebido uma notícia muito difícil sobre a minha família e Dono decidir que era hora de me usar sexualmente. Eu estava ainda chorando e tive que me submeter. Na hora foi algo muito pesado pra mim. Mas eu lembro, hoje, disso, como uma das coisas mais excitantes que passei.

Senhor H: Então, pensa sem ser estupro. Pensa em algo como cuspir. Cuspir é aviltante pro outro. É pesado. Imagina que negociamos que eu posso cuspir nela sempre que eu quiser, durante a relação. Então isso vai acontecer sempre que eu quiser. Seja quando ela se forma na faculdade, seja na porta do hospital por qualquer coisa, seja em casa, do nada, no dia a dia. Isso pode ser feito em todas essas horas. Mas isso passa também pela moral do Top. Ou seja, eu quero que ela seja exposta e machucada assim? Será que o dano que eu vou causar vale o prazer que vai me proporcionar? Ela precisa me conhecer MUITO bem, e estar preparada para dores que são fortes, e ainda, estar preparada para me dar abertura para eu ajudar no depois. Não é simples pra mim também. Quando não se tem limites, o limite é só meu tesão. Mas meu tesão é informado pela minha moral em algum nível.

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Égua reporter: Parece mesmo um jogo perigoso porque se joga com submissão mesmo em momentos em que o bottom está emocionalmente vulnerável ou não preparado para o que vai acontecer. O que diferencia CNC de abuso?

tavi_H: Ótima pergunta. O ponto todo é que, como foi dito, o bottom de uma relação com acordo do CNC deseja ir o mais próximo possível da sensação de violação, mas ele não quer sair na rua e sofrer um abuso real. Ele quer sim, a sensação, mas em ambiente controlado e com alguém em quem ele confia totalmente. Esse desejo é declarado pelo bottom. E exaustivamente discutido em negociação. O Top não deseja enganar ou se aproveitar de uma vítima. Ele quer parceria com alguém que também erotiza essa sensação.

Senhor H: Isso significa, como a tavi disse, que é desejo do bottom passar por isso, já discutido por MUITO tempo, pensado, reperguntados, e negociado a exaustão. Então, o abuso é descartado, mas a sensação de violação é bem real.

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Égua reporter: Quais as responsabilidades do Top numa relação CNC?

Senhor H: Primeiro a gente precisa diferenciar uma coisa. CnC não é uma relação, é um acordo acoplado a uma relação. Isso dito, [as responsabilidades] são extremas. Eu preciso estar pronto para lidar com o depois das práticas, e no caso de práticas sob o CNC entender que existe um peso maior e que esse peso pode fazer com que eu fique um tempo pegando bem mais leve, por exemplo. Estar sempre disponível, aberto, e não desfazer a dor do outro. Eu posso dizer: "tal coisa é decorrente da pratica x", mas não posso nunca desfazer dessa dor, como se ela fosse menor porque decorrente dessa prática. Eu acolho ela. Dizer o tempo, e o motivo ajuda a pessoa que sofreu a violação a lidar com isso, sabendo que é fechado naquilo, e que não é permitido a mais ninguém no mundo fazer isso com ela.

tavi_H: O aftercare no CNC pode ser complexo. O Top precisa estar disponível pra acolher o bottom no pós. Eu vejo muita responsabilidade do Top em observar muito bem o parceiro. E não aceitar se lançar em um acordo de CNC se tiver qualquer dúvida de que o bottom está apto pra esse tipo de jogo. Também é responsabilidade do Top não aceitar jogar com quem não tem esse fetiche. CNC por submissão apenas é um grande erro, na minha visão. Acho importante o Top escolher muito bem sua parceria.

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Égua reporter: Vocês estão falando desse tipo de jogo com bastante consciência de como funciona, riscos e o que cada um deve fazer para lidar com o que pode acontecer. Porém, já ouvi vários relatos de relações em que o Top convence o bottom a abrir mão de safeword e limites, mas sem muita explicação ou consciência do que isso implica. O que vocês tem a dizer aos bottoms que vivem ou viveram esse tipo de situação?

tavi_H: Safeword não cabe ao Top decidir se há ou não. É um direito de todo bottom praticante de BDSM.

Senhor H: CNC é sobre a existência de consentimento, ele dado, e informado por negociação, caráter, cuidado, conhecimento e comunicação. As outras situações são todas indizíveis: sempre precisa existir o consentimento. É errado e perigoso o que descrevesse. O CNC tem como fulcro o consentimento informado. É claro que existem riscos, mas ao mesmo tempo, não é convencimento, não é manipulação. São parceiros buscando o mesmo fim.

tavi_H: Por mais fascinante que seja o Top, creio que o bottom deva se olhar enquanto pessoa que faz suas escolhas, nessa hora. Se algo der errado, o bottom terá que lidar com as consequências (não tirando a responsabilidade do Top). Então é preciso entender que um bottom também é responsável por si mesmo e por sua segurança

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Égua reporter: Quais as responsabilidades de um bottom numa relação em que há um acordo CNC?

Senhor H: Da perspectiva do top, as duas responsabilidades da bottom são comunicação e se conhecer. Comunicação porque ela precisa estar aberta para que eu a acolha. E se conhecer, porque ela precisa entender o que está machucando para que eu possa traçar um plano de acolhimento.

tavi_H: Eu diria que a primeira é o autoconhecimento. Saber quem é. Conhecer profundamente seus desejos. Por isso a gente costuma dizer que CNC não é recomendado pra iniciantes. A gente leva um bom tempo nesse meio pra sacar os detalhes e as sutilezas do nosso prazer. E então, clareza. Ser honesto com o Top sobre seus desejos, limites, inseguranças, necessidades. O bottom de uma relação com acordo de CNC precisa saber se comunicar sem receio. Falar o que sentiu, o que foi incrível e o que não funcionou muito bem. E ser criterioso em sua escolha. Buscar um Top que o observe, que se interesse por suas reações.

Égua reporter: Plano de acolhimento? Como assim?

Senhor H: Por exemplo, teve uma situação que não era com a tavi, foi antes. E não foi em CNC, mas ilustra isso. Eu estava usando a pessoa, ela sentada em cima de mim. E eu disse: não é porque tu estás em cima de mim que tu tens controle nenhum. Isso pegou ultra forte nela. No acolhimento, no after, eu mostrei que isso é só quando estamos juntos, que ela tem potencia e realiza ela, que ela pode ser e é foda. E por aí vai. Não foi só o fato dela estar sendo usada de forma violenta (que é o principal) mas é como ela digeriu a situação. E esse é um paralelo que eu traço, quando cuido. Eu sei que tem lá o ponto focal, e eu sei que tem coisas além disso que batem. Eu vou acolhendo, cuidando, e mostrando que são coisas que ficam na relação.

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Égua reporter: Me parece que você tem que saber entender gatilhos, complexos e saber lidar com eles. É isso mesmo?

Senhor H: Sim, é isso mesmo.

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Égua reporter: Isso bate com o que a Tavi estava falando de que é necessário um Top que observe e se interesse pelas reações do bottom. Parece que tem de haver uma capacidade de entender o sentido que as coisas tem para o outro (me corrijam se eu tiver falando asneira).

Senhor H: Sim, é isso mesmo. É uma espiral ascendente de conhecimento e comunicação.

tavi_H: Exato. Hoje em dia lidamos com um grande número de Tops narcisistas (não necessariamente com o transtorno), focados completamente em si mesmos. Pessoas que tu lança uma pergunta interessantíssima e eles respondem e nunca perguntam “e vc?”, sabe? Que não se interessam muito em conhecer seus parceiros profundamente. Esses seriam péssimos Tops para a vivência do acordo de CNC.

Senhor H: Por consequência, eu passo muito mais tempo conversando e observando a tavi que qualquer outra coisa nessa vida.

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Égua reporter: Legal você falar isso, Tavi, porque é o que eu ia perguntar agora. Que tipo de pessoa vocês acham que não servem para CNC (além dos que não curtem esse tipo de jogo e dos iniciantes, que vocês já citaram)?

Senhor H: Pessoas novas no BDSM, pessoas que não se conhecem, tops narcisistas, tops novos no meio, gente que não sabe escutar e observar e se interessar.

tavi_H: Iniciantes. Se vc não tem nenhuma experiência, tu ainda está entrando no processo de se conhecer enquanto bottom. É sábio aguardar pra ver se vc reagiria bem ao ser, de fato, contrariado (a). Apressados e desinteressados pelo parceiro. Se vc quer só molhar o pé, passe longe. CNC mexe com emoções muito profundas. Pessoas com transtornos sérios ou que estão vivendo um momento difícil na vida. Se cuide. Espere. Volte a considerar a ideia depois.

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Égua reporter: Queria que comentassem uma pergunta: “O CnC seria como um cheque em branco, uma procuração de plenos poderes?”

Senhor H: Não acho apto chamar de cheque em branco. O que ele é sim, é um cheque não preenchido ainda, com determinação de aplicação do dinheiro. Eu sei que estou levando meio longe, mas pensa assim: o que se negocia são práticas ou aspectos, ou tempo. Dentro disso, está liberado fazer — DENTRO DA COMBINAÇÃO. Não são fundos infinitos, e tem um objetivo. Se eu combino cuspir quando eu quiser, sempre passa por eu fazer isso quando sinto que posso. Fazer isso no trabalho da minha bottom, por exemplo, está fora de cogitação, pra mim. Eu posso ter MUITO poder, não significa que vale a pena usar ele indiscriminadamente.

tavi_H: Eu acho que a comparação, por um lado faz sentido. CNC é sobre confiança. Eu me relaciono com um homem que, em tese, pode me dar qualquer ordem, me bater, me usar sexualmente… a qualquer tempo. Quando eu estou bem e desejando. Mas também quando eu não quero, quando estou frágil, quando estou no meio de uma crise de enxaqueca ou se acabei de perder um emprego… não importa quando. A decisão é Dele. O ponto é: Quem é Ele? O que Ele pensa? O que Ele valoriza? Do que Ele cuida. Eu sei muito bem. Foi um ano de negociação pra chegar nisso. Eu perguntei, investiguei, comprovei. Eu observo. Eu escolhi servir a uma pessoa ética. Então, ok. É entregar um cheque em branco. Mas tipo, pro teu pai, pra uma irmã… pra alguém em quem você confia.

Senhor H: Eu falei da perspectiva de quem recebe o cheque.

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Égua reporter: Qual a importância e como funciona a negociação para CNC em uma relação?

Senhor H: Sem negociação não existe CnC, nem BDSM. A negociação é fundamental, para que a gente se conheça, saiba por onde começa, se os tesões são compatíveis.

tavi_H: Eu acho que o ideal é que a negociação pra isso seja um longo período de convivência e muita conversa. Sobre tudo. De fetiches a posicionamento político. Busque saber o maior número de coisas sobre essa pessoa. Fale sobre vc. Nada deve ficar vago ou obscurecido por pudor. A comunicação vai ser a maior arma de vcs pra isso dar certo. Além disso, quem vive acordo de CNC tem que negociar sempre. Rs. Falar das experiências. Medir se está tudo bem. Eu gosto mesmo é de negociação que não termina.

Senhor H: Sim. Isso mesmo

Tavi_H: Estamos sempre conversando. Eu pergunto tudo que preciso. O Senhor também. Acho importante e delicioso

Senhor H: Sim. Eu pergunto bem mais do que eu preciso porque tenho sede de te conhecer, e te usar.

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Égua reporter: Quando algo muda ou não está indo bem, como fica a possibilidade de renegociar algum aspecto da relação?

Senhor H: Sempre aberta. Partindo do pressuposto que está todo mundo de boa fé.

tavi_H: Tem espaço pra isso. Eu sou muito honesta sobre o que me fez bem ou mal. Eu tenho drops eventualmente e muita coisa é difícil de obedecer, mas se algo prejudicar minha funcionalidade (é como eu meço até onde posso ir), eu imediatamente vou conversar com o Dono. A gente quer gozar com minha dor, minha humilhação, meu sofrimento emocional. Mas eu sei que Ele tb quer me ver melhor como pessoa, e não pior. Então, se algo der errado, conversamos, recalculamos a rota, se necessário for.

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Égua reporter: Alguma coisa que vocês gostariam de acrescentar que não perguntei?

Senhor H: Essa eu deixo pra a tavi.

tavi_H: Sobre CNC, o que eu mais digo é: evite. Se não puder, goze muito! CNC é pra quem não pode evitá-lo.

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Equina Nur
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