O grande problema da liturgia — BDSM

Equina Nur
4 min readJul 7, 2021

Sim, esse texto é sobre liturgia, mas vou basicamente falar de protocolos e você vai entender porque. Protocolos são convenções que governam o conjunto de comportamentos aceitáveis em uma relação, ritual, ambiente ou evento. Como muitos praticantes de BDSM tem fetiche com relações hierárquicas cheias de deferências da parte submissa para a dominante, protocolos acabam fazendo parte de muitos jogos. Em geral esses protocolos são criados dentro da própria relação, inspirados em contos, cenas de filme, rituais religiosos ou o que mais a fantasia mandar.

Protocolos são consensuais

BDSM é um nome guarda chuva para uma infinitude de práticas que têm como característica uma desigualdade de poder combinada entre as partes. Na vida baunilha, bottom e top podem ser igualmente poderosos ou pode até acontecer do bottom ter uma carreira mais bem sucedida, melhores contatos e ter mais poder econômico e social que o top.

Porém, a desigualdade de poder é parte do jogo e os protocolos, que geralmente incluem deferências por parte do bottom, como chamar de senhor e ajoelhar em momentos específicos, são muito comuns.

Tipos de protocolo

No exterior, alguns diferenciam os protocolos entre high protocol (estrito), que são protocolos mais rígidos usados em sessões privadas, jantares e eventos; medium protocol (médio), que é o comum dentro de uma relação D/s; low protocol (baixo), bem mais solto e até protocolo nenhum, como por exemplo num munch ou play party em que nem todas as pessoas se conhecem e estão mais para bater papo ou fazer práticas.

Aqui no Brasil acontece algo bem parecido, só que…aí vem a dita "liturgia".

O que liturgia tem a ver com protocolo

Liturgia é um termo geralmente usado para designar rituais ou conjunto de elementos em práticas religiosas, em especiais as católicas. Aqui no Brasil, foi o termo que parte da comunidade adotou para falar de protocolos (no exterior o termo usado é protocolo mesmo, nada de misturar palavra com viés religioso com BDSM).

O problema é que aparentemente, a palavra liturgia trouxe consigo o tom religioso e com ele um dogma (algo que não pode ser questionado): "o verdadeiro BDSM é litúrgico" . A afirmação é bastante vaga e não explica nada, mas um ponto específico dessa suposta lei e que defensores repetem por aí é a ideia de que todo bottom, sempre que estiver na presença de alguém que seja top, deverá chamá-lo de senhor.

Essa ideia de "liturgia" fere o SSC

Se todos os bottoms devem prestar deferência (no caso chamar de senhor) a qualquer um que se identifique como top, o medium protocol acaba sendo obrigatório inclusive entre desconhecidos. Então se você quiser ser bottom, você deverá tratar como autoridade um cara de chinelo havaina, de Piracicaba*, chamado Wandercleiderson, que você nunca viu na vida e com o qual nunca negociou, pelo simples motivo que ele de uns anos para cá passou a se auto-proclamar Lord Magníficus.

Não tem negociação, acordo ou safe-word, você vai ter que chamar o Wandercleiderson de senhor. O que era para ser uma entrega negociada e consensual de poder no BDSM passa a ser uma entrega compulsória.

"Liturgia” compulsória mistura fantasia com realidade

Além de sairmos de um jogo consensual entre adultos, ainda por cima borramos a linha entre fantasia e realidade. Sim, a fantasia de que somos senhores e submissos apaga um pouco a realidade de que todo mundo paga boleto, é igual perante a lei e que um top deixa de ter poder na hora que o bottom diz uma safe-word ou fala que não quer mais aquela relação ou prática.

Com essa mistura, o Wandercleiderson pode passar a se dar alguns direitos estranhos, como por exemplo o tratar alguém mal para além de um jogo erótico quando estiver bravo ou frustrado, de não conversar sobre situações que não estão legais e de usar sua suposta autoridade para se evadir também de outras responsabilidade. Assim, nosso amigo Wandercleiderson fica mais parecido com um abusador qualquer do que o praticante de formas de prazer consensuais.

Mas então não pode liturgia?

No sentido de um medium protocol compulsório para todos os praticantes não, a não ser que todo mundo tenha consentido ou que desistam da ideia da consensualidade. Mas como protocolo consensual negociado em relações ou como regra de eventos específicos, festas ou grupos de WhatsApp cujos convidados sejam previamente avisados, sim, claro que pode! Inclusive pode ser uma experiencia incrível, que deixará quem gostar de liturgia muito satisfeito e ser um exemplo de como high e medium protocol podem ser muito interessantes.

*eu amo usar chinelo havaianas e sou do interior como nosso amigo Wandercleiderson, isso foi uma piada.

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Equina Nur

Égua-humana 100% brazuca que usa seus cascos também para escrever | equinanur@gmail.com